Quando a hashtag sumir, como você continuará sendo antirracista?

Patrícia Gonçalves
7 min readJun 1, 2020

Estamos em meio ao caos. Na verdade, precisamos vivenciar uma notícia global para nos mobilizarmos enquanto sociedade. Quer dizer, algumas pessoas descobriram que as vidas negras importam através de uma hashtag, e tá tudo bem que ela seja levantada. No entanto, eu te pergunto: Quando a hashtag sumir dos “Assuntos do momento” no Twitter, da corrente do Instagram e dos milhares de posts por aí, como você continuará sendo antirracista?

Créditos: https://www.nappy.co/ (um banco de imagens gratuito com fotos de pessoas negras)

No domingo, 31 de maio, postei no meu perfil do Instagram que a maioria dos meus amigos, em 27 anos, sempre foram brancos. Criei uma consciência racial tardia, por volta dos meus 20 anos, a maioria dos amigos que cultivo até hoje me viram nesse processo, seja pessoalmente ou pelas redes sociais. Apesar disso, me dei conta há pouco tempo sobre as pouquíssimas vezes que esses amigos levantaram um posicionamento por onde passavam, nos grupos de amigos brancos, no trabalho, como eles se comportavam quando eu contava uma situação racista que passei etc. — talvez eu estivesse numa utopia de que estávamos alinhados.

Quem é você, querida?

Pra ficar mais claro, já que tudo sempre foi, você precisa entender o meu contexto social até chegar em São Paulo, em junho de 2014. Nasci no interior do estado, em Marília, no segundo ano da década de 90. Sou filha de pais graduados em uma universidade pública, que ascenderam para classe média quebrando um ciclo de pobreza de duas famílias pretas, e isso significa que estudei dos 3 aos 17 anos em escolas particulares, fiz inglês, natação, jazz, ballet, academia, viajei em quase todas as minhas férias, tive festas de aniversários todos os anos e passei as tardes na casa da minha avó para que eles pudessem tornar isso real. Tenho pais e mães pretos casados até hoje e extremamente presentes na minha vida, caso você não saiba, esse é um privilégio para negros.

Dna. Solange (63 anos) e Sr. Valdir (64 anos) porque a gente não chama ninguém de você em casa.

Apesar da grana contada mensalmente, fiz jornalismo na PUC-Campinas, morei na rua debaixo da faculdade, sozinha, e não precisei trabalhar para me sustentar durante o período. Comecei um estágio no terceiro ano e tive casa, comida, plano de saúde, transporte, materiais para estudo na faixa, tudo sustentado pela minha família. Ou seja, vantagens ao longo da vida que infelizmente não são comuns para pessoas negras e que me fizeram frequentar exclusivamente ambientes com pessoas brancas, e com um detalhe especial: bem racistas.

Bom, mas como eu disse em um outro post no LinkedIn, assim como pessoas brancas são só brancas, pessoas negras são só negras.

Eu não sou filha de pais militantes, com uma consciência racial firmada, sou a típica pessoa que só ouviu: “Você precisa ser três vezes melhor”, sem que houvesse a explicação de que isso deveria acontecer por conta do racismo. No meio da faculdade, com a ajuda da internet, comecei um processo de autoconhecimento tenso, que envolveu uma transição capilar, muita raiva e aquela vontade de "botar fogo em todos os racistas", mesmo. Sobretudo, abarcou estudar, fazer cursos, ler livros, ver filmes e documentários. Quem diria, hein? Eu não nasci sendo um Google sobre racismo, acredite.

Embora pareça uma boa trajetória (de fato tenho que agradecer os benefícios que meus pais me proporcionaram) sofri racismo a vida toda, e ainda sofro todos os dias que coloco o pé pra fora de casa. Lembro da primeira vez que isso aconteceu, aos meus 6 anos, quando a professora da escola gostaria que eu fosse a Tia Nastácia — aquela do Sítio do Pica-Pau Amarelo, criado pelo racista Monteiro Lobato — em um teatro escolar. Um estereótipo racista televisivo da mammy, muito bem explicado aqui, pela Suzane Jardim.

Naquela época, minha mãe tinha dado o primeiro passo para eu nunca mais esquecer o que era racismo, apesar dela nunca ter dito com estas palavras. Ela falou para a professora Silvana que se não houvesse outro personagem pra mim, eu não participaria do teatro. Penso que nunca esqueci aquilo porque lembro dela indo até à porta da classe, comigo ao lado, dizendo que eu não ia participar de algo que eu considerava tão legal.

Pois bem, como se não bastasse a “metida de louco” da professora, que alegou não ter outro papel, a escola pintou a minha melhor amiga na época com tinta preta. Então, dias depois vi o meu primeiro black face nas fotos da apresentação. Talvez alguém tenha plantado ali a semente do ativismo em mim.

Lembro de ficar bem triste, afinal a classe inteira participou de tudo, menos eu, logo eu que no mesmo ano também ouvi de um colega de classe que meu cabelo era de "Bombril" e incrivelmente uma colega de classe me defendeu. É, eu só tinha 6 anos e lembro claramente de tudo e poderia ficar aqui por horas contando como o racismo deixa marcas profundas, mas hoje quero te alertar de outras coisas.

Só subir uma hashtag não faz de você antirracista

Primeiro, acho bem coerente dizer que: as manifestações nas redes são válidas, a questão é que em muitos momentos somos levados pelo efeito “manada” da própria rede. Em outras palavras, aquela pessoa que já foi racista de várias maneiras pode tranquilamente se esconder e se posicionar sobre o assunto por trás de um @ e, no dia a dia, não ser antirracista.

Essas são as pessoas que se incomodam com o posicionamento de alguém negro no seu ambiente de trabalho, ficam um pouco desajeitadas quando você conta uma conquista, duvidam que você já vivenciou algo como ela, só entendem e colocam você em narrativas de dor e sofrimento, ficam se desculpando o tempo todo por serem brancas, não fazem nada para mudar o cenário ao seu redor — por exemplo, pedir explicações do chefe do porquê no seu time não existem pessoas negras. São os mesmos colegas que, quando você contou uma situação racista, soltaram: Caramba, amiga. Que foda! E nunca te deram sequer um cenário de resolução. Veja bem, é fácil ser antirracista atrás das telas, não é mesmo?

Em 2019, no curso da Profa. Dra. Rosane Borges (doutora mesmo, porque só é doutor quem tem doutorado), estudamos sobre “Representação, Imaginário e Imagens de Mulheres Negras”. Uma das premissas era entender que precisamos fazer dois recortes quando falamos de como a sociedade vê negros no Brasil: quando pessoas negras são visualizadas e quando somos visibilizados.

O primeiro conceito recai justamente sobre o que tem acontecido na última semana, em que de repente, por uma mobilização global, pessoas negras são visualizadas. As mazelas do racismo sofrido por elas está em debate devido aos acontecimentos políticos no Brasil e no mundo, para além disso, porque ela foi mais “impactante” do que manifestações corriqueiras sobre o tema. Inclusive, mais uma vez tivemos que usar “maneiras mais duras” para chamar atenção — algo que, sinceramente, ninguém gostaria, mas em tempos tão sombrios não houve outra alternativa, se é que isso aconteceu em outro momento.

Posto isso, fico me perguntando se nossos amigos brancos e todos os nossos “seguimores” das redes sociais vão nos tornar visibilizados (o segundo conceito) dentro dos espaços de poder após a hashtag sair do “assunto do momento”. Ora, voltando para a reflexão acadêmica, o que a professora nos trouxe nesse curso foi que pessoas negras precisam ganhar visibilidade e serem tratadas “como um patrimônio do comum”.

A construção do antirracismo

É essencial que os nossos discursos atuais sejam levados para a "circulação social", como Borges ressaltou durante as minhas aulas. Segundo bell hooks (se escreve tudo em minúsculo mesmo), “não basta que a nossa imagem seja ressignificada, é necessário que ela seja patrimônio intelectual” do país em que vivemos, pois é assim que os brancos são vistos. Essa construção depende da mudança do imaginário de pessoas brancas sobre pessoas negras em todos os espaços. Então, amigo, tenho uma notícia para te dar:

Ser antirracista é mais do que compartilhar algo, você vai precisar fazer algumas coisas como: revisitar suas lembranças, seus pensamentos, suas ações e finalmente seus privilégios e se perguntar: ”As pessoas negras estão ou estavam lá?” Se não, qual o esforço que você tem feito para que seja criado um novo imaginário?

Tendo isso em vista, proponho a você pessoa branca, que tem se comovido nesta semana, que nos assegure um lugar de poder e seja aliado para construir esses espaços. Como pessoa negra, eu gostaria de ver essas mesmas pessoas que compartilharam posts e colocaram hashtags mudando estruturas, revendo seus conceitos internamente, de uma maneira que vai doer muito, vai incomodar demais, mas que finalmente abale as estruturas de onde elas habitam.

Já que são vocês são maioria no poder, apesar de sermos maioria em população, precisamos de uma mudança social imediata. Como disse o Emicida uma vez (no caso em que 80 tiros da polícia assassinaram um homem negro no Rio de Janeiro), "era para o nosso país estar pegando fogo” e nós não estamos fazendo isso da forma que deveríamos.

Além disso, precisamos do compromisso em mudar o cenário da sua rua, do seu prédio, do seu trabalho, do transporte público, das revistas, sites e livros que você lê. Que você não tenha medo quando um garoto negro passa ao seu lado, ou que quando alguém fale sobre uma mulher bonita, não pense no padrão branco. Desejo que seus filhos cresçam com bonecas pretas, um super-herói preferido negro, leiam personagens como eu, conheçam a verdadeira história do Brasil e que tenham colegas pretinhos na escola.

Quero que você nos veja como artistas, médicos, designers, jornalistas, atletas, não só os que tenham notoriedade midiática ou ascensão. Necessito que quando você indicar alguém para o seu trabalho ali estejam pessoas negras: mães, gordas, periféricas, LGBTQI+, deficientes etc. Preciso que você refaça sua imaginação para nós não termos essa conversa novamente.

“O fato de estarmos aqui e de eu falar essas palavras é uma tentativa de quebrar o silêncio e de atenuar algumas das diferenças entre nós, pois não são elas que nos imobilizam, mas sim o silêncio. E há muitos silêncios a serem quebrados”, Audre Lorde, em Irmã Outsider.

Todos os dias, quando eu saio de casa, eu tento me proteger mentalmente do racismo que vou sofrer, mas hoje eu quero saber: Depois das hashtags, posso contar com você para ser antirracista a cada passo que der? Espero que sim!

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Patrícia Gonçalves

comunicadora, content designer e poetisa quando fico canceriana demais 🏳️‍🌈